Um pouco do que vivi, convivi e aprendi em meus três primeiros meses de vida na Holanda.

Hoje faz 90 dias que cheguei na Holanda para trabalhar, vindo de Malta onde morei por dois anos. Uma mudança grande em todos os sentidos, mesmo ambos os países estando no mesmo continente. A diferença entre a pequena ilha de Malta e a encharcada Holanda é realmente grande.

Não quer dizer que seja ruim, longe disso. Somente diferente. Malta, uma pequena ilha com pouco verde e um caos no transporte. Holanda com grandes extensões de terra cultivadas e um tráfego que beira a perfeição.

Porém não é sobre as diferenças entre os dois países que escrevo, mas da experiência de estar na Holanda e minha percepção sobre tudo e todos.

Vir para a Holanda – A história

Vim para a Holanda para um contrato temporário no Joint Research Centre da Comissão Européia situado em Petten. Lá desenvolvo softwares para ajudar pesquisadores de todo o mundo em questões relacionadas com reatores nucleares. Basicamente, ferramentas de treinamento e portais que contém informações sobre acidentes nucleares.

Confesso; não foi fácil deixar Malta. Gostava e gosto muito da ilha mesmo com os perhaps que lá existem. Mas a oportunidade de estar novamente numa grande instituição (já estive na ONU) pesou. Um salário razoável, um enorme acréscimo profissional no curriculum, uma nova experiência, muito aprendizado. Como sou dado à experiências novas, deixei o tempo da ilhota para trás e aportei nas “terras baixas”.

Chegando

O primeiro “porto” para minha nova vida foi a pequena Alkmaar. Situada cerca de 50km ao norte de Amsterdam, ela é famosa por seus queijos mas não vive somente deles. Gado, leite e agricultura são muito fortes na região. A cidade é uma mistura de ruas estreitas e prédios pendendo para frente, muitas árvores e flores e grandes avenidas. Uma cidade bonita, limpa, organizada e claro, com água para todos os lados.

Nela passei meus primeiros trinta dias. Inicialmente num AirBnb e depois no único hostel da cidade que é uma mistura de pub com hostel (King’s Inn). Nunca tinha ficado em lugar assim e foi uma experiência de alguma forma frustrante. O barulho em alguns dias gerado pela exaltação de hóspedes e clientes “altos” me tiravam do sério. Mas se estamos na chuva é para se molhar. E por falar nela, chove horrores na Holanda e faz frio.

Em Alkmaar comecei a aprender um pouco sobre as pessoas, costumes, crenças e o modo de ver a vida. Me surpreende o “eu cuido da minha vida e você cuida da sua”, sem que seja individualismo. Até acredito que exista individualismo, mas é pouco visível. O holandês, via de regra, vive e deixa viver.

Religião e “foda-se”

A religião não faz parte do cotidiano. Existem templos e igrejas de todas as vertentes e crenças, mas foram raros os dias que vi estes locais com alguma atividade. De base protestante, a Holanda não exerce seu fanatismo religioso como outros países.

Na outra mão (ou contramão) está a defesa da liberdade. Mesmo em Alkmaar, considerada “interior”, é fácil perceber. O holandês não se importa com posses ou aparências. Ter uma bicicleta de € 1500.00 ou uma enferrujada de € 50.00, dá no mesmo. Se dirige um Porsche ou um Panda, tanto faz. Se tem cabelo verde ou raspa e tatua o crânio, foda-se.

O mesmo cenário é visto dentro da Comissão Européia. Vários pesquisadores poderiam se confundidos com mendigos no Brasil. Porém o sujeito tem pós-doutorado em não sei o quê e com toda certeza usa a mesma calça amassada a semana toda num grande e sonoro “foda-se” para todos.

O que já aprendi sobre a Holanda

Trê meses é pouco para desbravar um país tão interessante e tão cheio de história e extremos. Entretanto é impossível que uma pessoa atenta e aberta à novidades não perceba mesmo em três meses, alguns sinais e detalhes da cultura holandesa.

Dessa maneira, além dos já citados, cetamente vale pontuar os seguintes aspectos do dia-a-dia daquilo que já vivi nestes noventa dias holandeses.

Agricultura e pecuária

Viajando todos os dias para o norte do país, vejo a força da pecuária pelos campos que passo. Vacas, cabritos, ovelhas e cavalos pastando e engordando numa enorme tranquilidade e desse modo, pode-se pensar que o país consome muita carne. Eu também imaginava o mesmo, mas a dieta holandesa é de pouca carne e raro é encontrar um bife, sendo quase tudo exportado.

Por certo todos conhecem a Holanda por seus lindos campos de tulipas que oferecem um retumbante arco-íris de cores nas primaveras. Mas isso é pouco. Descobri que o país é o terceiro maior exportador agrícola do mundo, atrás somente dos EUA e França, mesmo tendo território menor. Acredite, aqui tudo nasce e até maracujá são plantados graças a diferentes técnicas agrícolas e claro, a água.

Águas

Inegavelmente os holandeses manjam dos paranauês das águas. É impressionante como o país inteiro é cortado por rios, canais, restingas e lagos, sem que isso afete a economia do país. Pelo contrário, aproveitam essa imensidão de água para produzir mais e melhor e a incessante e interminável disputa territorial com o mar chega a comover. Não por algum sofrimento, mas pela forma como conduzem harmoniosamente essa relação de forças.

Em nenhuma das cidades e tampouco em nenhum dos quilômetros rodados, senti mau cheiro vindo das águas. Não é “água para beber” mas está anos-luz da lagoa Rodrigo de Freitas ou do rio Tietê. A sobrevivência do país depende das águas e desde sempre, travam uma luta diária com ela.

Dessa luta nasceu outro símbolo da Holanda: os moinhos. Ao contrário que muitos imaginam, eles não eram usados com o intuito de moagem, mas com o propósito de bombear água, drenando terrenos. Vale assistir o documentário Barreira contra o mar a fim de compreender como é a vida na Holanda com as ameaças e vantagens das águas.

Transporte

Sabe aquela coisa que dá gosto de ver? Assim é o transporte na Holanda. Estradas perfeitas e sem retardados realizando ultrapassagens perigosas. Trens pontuais e eficientes. Canais que levam tudo para todos os cantos e bicicletas, muitas, milhões de bicicletas.

A tara pelas bikes é estonteante. São milhões de todos os tipos e milhares de quilômetros de ciclovias verdadeiras (nada de pintura no chão) que cortam e ligam todas as cidades do país. Carros são o derradeiro meio de transporte e sobretudo desmotivado pelo governo. Cada vez mais, é difícil encontrar um local para estacionar, postos de gasolina são esparsos e as ruas mais estreitas. Definitivamente para quem ama carro, certamente viver na Holanda não é fácil.

A princípio, tudo se faz com bicicletas. Carrega-se crianças, livros, tubos, cadernos. Pedala-se de salto alto, saia e meia fina, de terno e gravata e até pelado. Algumas custam o preço de um carro mas a maioria não passa de € 100.00 usada. Crianças de 3 anos já possuem sua bike e senhoras de 70 usam para ir no mercado ou a feira. Até mesmo chefes de governo as utilizam para trabalhar.

Os trens merecem um capítulo a parte devido a paixão que tenho por eles. Não são os ICE’s alemães ou Maglev chinês, mas ligam todas as cidades e vilarejos com eficiência, pontualidade e uma enorme economia de combustível fóssil.

Amsterdam

No segundo mês mudei-me para Amsterdam, a capital do país (mas não de governo) por algumas questões pessoais. Mesmo sendo uma grande metrópole visitada maciçamente por turistas, ela possui um quê de cidade do interior. Sua arquitetura e seus canais fazem dela uma cidade muito charmosa.

Resolvi morar na muvuca de cara para a Amsterdam Centraal (estação de trem) e vizinho do famoso Red Light District, ou somente Red Light. O Red Light é onde encontra-se tudo aquilo que dá ojeriza em muita gente. Prostitutas, drag queens, sex shops e locais para venda e consumo de drogas.

Para quem não conhece o cenário, parece o inferno na terra. Ledo engano. Eu ando muito por Amsterdam e sempre atravesso essas áreas da cidade, inclusive a noite. Nesses 2 meses não vi uma única intervenção policial ou um “pega ladrão” que fosse e a putaria é organizada, literalmente.

Se pudesse resumir Amsterdam numa frase

A cidade onde todos, e principalmente “bolsomildos”, deveriam morar ao menos 6 meses de suas vidas

Inegavelmente, é uma cidade que destrói qualquer preconceito por levar a liberdade individual tão a sério. Se você está num bar fumando maconha, então o problema é seu. Se você quer entrar num bondage sex shop as 3 da tarde e comprar um kit dominatrix, dane-se. Simples assim.

Não apenas isso; a mescla racial e religiosa em Amsterdam é enorme. Por causa de suas históricas conquistas, a Holanda recebeu e recebe uma grande quantidade de imigrantes de suas ex-colônias. Assim sendo, é fácil encontrar indonésios muçulmanos e surinameses creoles no mesmo espaço e interagindo com holandeses protestantes. E para apimentar o caldo, gays e lésbicas, roqueiros hardcore e todo o tipo de gente e cabeça.

Amsterdam é um maravilhoso caldeirão multicultural e multirracial.

Drogas

Decerto existe um erro crasso sobre as drogas na Holanda. Muitos pensam que o país é uma Sodoma completa mas não é. Ao contrário do que dizem, drogas de nenhum tipo são legais na Holanda, porém existe uma tolerância as chamadas “drogas leves” (basicamente maconha e haxixe) com consequente direcionamento de recursos públicos para coibir as drogas pesadas.

Exceto pelo meu cigarro, nunca usei drogas (ok, algumas vezes bebi até cair, mas foram poucas) e parco foi meu contato com elas (sempre tive medo de jacaré em cima do armário). Isso não é sinônimo de ser contra drogas. IMHO, as pessoas fazem o que quiserem de suas vidas, desde que não torrem o saco dos outros.

Contudo confesso que volta e meia me sinto nauseado com o cheiro da maconha que entra pela minha janela. Dias atrás andando pelo Red Light, vi uma garota fumando um baseado que parecia uma bomba. O negócio era mais grosso que meu dedão e tinha uns 10cm. Algo para qualquer jamaicano aplaudir.

Me faz mal? Não. Incomoda a cena? De jeito nenhum. A diferença é que eu escolhi morar onde moro e no “pacote” da locação, além da água, luz, TV e internet, vem o cheiro da maconha junto. Assim, respeitando o direito do “maconheiro”, fecho minha janela (inclusive agora que tem dois do outro lado do canal fumando um).

Prostituição

Outro assunto controverso. A prostituição na Holanda é legalizada e regulamentada para mulheres acima de 18 anos, mas o tráfico humano e cafetinagem são proibidos e sim, as famosas vitrines existem e ficam aqui do lado de casa.

Nada demais. Mulheres que arrumaram uma forma de ganhar seu dinheiro e pagar suas contas (e impostos). Alguns acham degradantes mas não entendem o contexto por trás das janelas. Como qualquer produto (sexo é um produto), ele precisa ser exposto para ser vendido. Como a Holanda (e não somente Amsterdam) tem um clima pouco agradável, expor o “produto” no frio, chuva e vento, não é interessante. Então achou-se uma solução: janelas. As moças ficam de biquínis num ambiente agradável e os clientes podem “avaliar” o produto pelas janelas.

Se pensa você que é uma putaria desenfreada, engana-se. O Red Light é tão seguro e decente como qualquer outro bairro de Amsterdam. Os malucos da bright ficam na nóia nos coffee-shops e as meninas em suas vitrines. Polícia? Sem dúvida. Mas somente para separar marmanjos que encheram a cara ou para resolver algum problema com um turista desavisado que tirou uma foto das meninas e os seguranças não gostaram (nunca gostam).

Os próximos 90 dias

Ainda tenho ao menos três meses mais de vida na Holanda. Neste período ainda vou escrever sobre algumas outras cidades que visitei como Hoorn e Rotterdam e outras impressões. Certo é que sentirei falta. A mistura de liberdade com regras, o respeito, a tranquilidade de espírito em não se preocupar em ser assaltado, as bicicletas, a comida ruim e a boa cerveja ficarão na lembrança para sempre.

Até lá resta aproveitar o Reino dos Países Baixos.